“De pequenino é que se torce o ecrãzinho”1 esta expressão popular reformulada tem vindo a assumir um significado cada vez mais fundamental na crescente problemática da exposição e utilização de ecrãs na primeira infância (até aos seis anos).
Neste sentido, gostaria de colaborar para a reflexão sobre este tema que tanta preocupação tem despertado na prática clínica na infância pelo impacto que tem vindo a ter no desenvolvimento infantil.
O problema
Como sabemos, atualmente os ecrãs estão disponíveis na maioria dos contextos (familiar, profissional, social) e a sua utilização é imprescindível no modo de vida atual. Esta utilização, que já era significativa, teve um aumento exponencial depois da pandemia COVID-19. Contudo, existem cada vez mais evidências dos riscos para o desenvolvimento global das crianças pequenas associados à utilização excessiva de ecrãs.
A literatura diz-nos que nas crianças até aos 2 anos a utilização excessiva dos ecrãs pode alterar a plasticidade neuronal e afetar o neurodesenvolvimento favorecendo o aparecimento de atrasos no desenvolvimento da linguagem e da comunicação, competências sociais, emocionais, comportamentais e motoras2,3. Ficam alguns exemplos:
Linguagem: Em 2020 uma meta-análise concluiu que uma maior utilização de ecrãs (horas) está associada a um pior desenvolvimento da linguagem. Por outro lado, as crianças que iniciam mais tardiamente a utilização dos ecrãs têm um melhor desenvolvimento da linguagem4.
Sono: A utilização excessiva de ecrãs também influencia significativamente a qualidade e quantidade de sono. Estudos recentes sugerem que quanto mais cedo (antes dos 18 meses de idade) e quanto maior for o tempo de exposição a ecrãs, mais alterações de sono surgem (aumento da latência do sono, mais despertares noturnos menor tempo total de sono) em bebés e crianças até aos 6 anos de idade5,3.
Emoções: A literatura vem também sugerindo que a utilização de ecrãs está positivamente associada com problemas emocionais/comportamentais como dificuldades na tolerância à frustração, birras frequentes, ansiedade elevada e impulsividade nas crianças5,3.
Recomendações
Neste sentido, será fundamental limitar o uso de ecrãs em crianças pequenas, alertar para os riscos do seu uso excessivo, e sugerir algumas recomendações para crianças até à idade pré-escolar:
– Limitar a exposição: Tanto a Academia Americana de Pediatria (AAP) como a Organização Mundial de Saúde (OMS) apontam atualmente para limitações significativas na exposição das crianças aos ecrãs.
● Até aos 2 anos, as recomendações são para evitar os ecrãs (televisão, tablet e principalmente telemóveis).
● Após os 2 anos, os pais podem começar a apresentar alguns programas de “alta qualidade educativa”, contudo, deverão ser os próprios pais a mostrar aos seus filhos, para responder a quaisquer perguntas que possam ter e controlar os conteúdos.
● Até aos 5 anos, as recomendações sugerem limitar o consumo de ecrãs a 1 hora diária (programas educativos de qualidade) novamente com a ressalva de que os pais devem ver conjuntamente com os filhos (“e não lhes dar um tablet ou telemóvel para as mãos sem controlo parental”).
– Comece por dar o exemplo desde cedo:
● Mesmo antes das crianças terem tablet ou telemóvel próprio, mostre-lhes como devem ser utilizados. Não utilize o telemóvel na hora das refeições, olhe para as pessoas (principalmente para os seus filhos) quando elas falarem consigo (e não para o telemóvel).
● Lembre-se de que são os pais os modelos que os filhos mais observam e é com os pais que os filhos mais aprendem.
– Não subestime o valor dos brinquedos tradicionais e dos espaços ao ar livre:
● É importante que as crianças experimentem uma “brincadeira livre” e não estruturada, o que significa que elas decidem o que fazer e como fazer, e estão simplesmente a brincar (e não a tentar chegar ao próximo nível de um jogo). Este tipo de brincadeira permite que as crianças:
- Mexam-se ao seu próprio ritmo, em vez de serem conduzidas (ou apressadas) por qualquer jogo digital de movimento rápido;
- Desenvolvam a criatividade e a experiência em tomar decisões;
- Pratiquem a partilha e o trabalho de equipa com outras crianças ou adultos (pais, familiares);
● As aplicações e os jogos digitais – por mais educativos que afirmam ser – não substituem o tipo de aprendizagem que ocorre naturalmente às crianças, se o permitirmos.
– Deixe o tablet em casa e os telemóveis são para os adultos:
● Embora sejam úteis durante longas viagens, os tablets e outros dispositivos não deverão estar disponíveis quando as crianças forem no carrinho ou a passear, assim como quando vão para a escola;
● É importante que as crianças mais novas tenham a oportunidade de olhar à sua volta e encontrem entretenimento e distrações (e aprendizagens) no mundo real também.
A finalizar, sugerimos ainda que a televisão e outros ecrãs devem estar desligados enquanto as crianças brincam, para que não haja distrações no processo criativo da brincadeira livre. Importa ainda referir que o uso dos ecrãs (tablet, telemóvel dos pais) como uma ferramenta para “calar” as crianças, não é nada aconselhável. As crianças deverão desenvolver competências de autorregulação e aprender a lidar com a frustração. Assim, procure juntamente com a criança, descobrir qual a melhor forma de resolver o problema, inventar alternativas para evitar o aborrecimento, acalmá-la e descobrir outras estratégias para canalizar as emoções.
Referências
- Pereira, T. (2023, 16 de maio). De pequenino é que se torce o ecrãzinho. Sábado. https://www.sabado.pt/opiniao/convidados/tiago-pereira/detalhe/de-pequenino-e-que-se-torce-o-ecrazinho
- Heffler, K. F., & Oestreicher, L. M. (2016). Causation model of autism: Audiovisual brain specialization in infancy competes with social brain networks. Medical hypotheses, 91, 114–122. https://doi.org/10.1016/j.mehy.2015.06.019
- Li, C., Cheng, G., Sha, T., Cheng, W., & Yan, Y. (2020). The Relationships between Screen Use and Health Indicators among Infants, Toddlers, and Preschoolers: A Meta-Analysis and Systematic Review. International journal of environmental research and public health, 17(19), 7324. https://doi.org/10.3390/ijerph17197324
- Madigan, S., McArthur, B. A., Anhorn, C., Eirich, R., & Christakis, D. A. (2020). Associations Between Screen Use and Child Language Skills: A Systematic Review and Meta-analysis. JAMA pediatrics, 174(7), 665–675. https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2020.0327
- Janssen, X., Martin, A., Hughes, A. R., Hill, C. M., Kotronoulas, G., & Hesketh, K. R. (2020). Associations of screen time, sedentary time and physical activity with sleep in under 5s: A systematic review and meta-analysis. Sleep medicine reviews, 49, 101226. https://doi.org/10.1016/j.smrv.2019.101226